Opinião Parlamentar (22/05/2025). Artigo de Opinião da Parlamentar Victoria Donda Pérez (Argentina), Presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento do MERCOSUL.
O anúncio do Governo argentino sobre uma reforma migratória por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) acendeu o alerta no Parlamento do MERCOSUL. Como Presidenta da Comissão de Direitos Humanos desta instituição, considero necessário expressar publicamente as razões pelas quais essa iniciativa representa um risco para os próprios fundamentos do nosso processo de integração regional.
Um retrocesso de três décadas
Durante trinta anos, o MERCOSUL construiu um marco jurídico que reconhece a livre circulação de pessoas como um de seus pilares fundamentais. O Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes, vigente desde 2009, estabeleceu procedimentos simplificados que permitiram a milhões de cidadãos da região exercer seu direito de migrar e se estabelecer com dignidade.
As medidas anunciadas em 14 de maio pelo porta-voz presidencial Manuel Adorni não apenas contradizem esse marco normativo, como também representam o abandono da abordagem baseada nos direitos humanos que historicamente caracterizou a política migratória argentina desde 2003.
Preocupações fundamentais
1. Violação de compromissos regionais
A reforma proposta contradiz diretamente o Acordo de Livre Circulação do MERCOSUL, particularmente os artigos 1, 3, 4 e 9 do Acordo sobre Residência, que garantem procedimentos simplificados de regularização migratória e o acesso igualitário a direitos para todos os nacionais dos Estados Partes.
2. Abandono do paradigma constitucional
A Lei Nacional de Migrações argentina reconhece o direito de migrar como “essencial e inalienável”, em consonância com o preâmbulo constitucional que garante os benefícios da liberdade “a todos os homens do mundo que queiram habitar o solo argentino”. Esta reforma representa uma mudança de paradigma que deveria ser objeto de debate democrático, e não de imposição executiva.
3. Ausência de evidência empírica
As justificativas apresentadas carecem de respaldo verificável. O número de 1.700.000 migrantes irregulares em 20 anos, mencionado sem fontes, foi questionado por organizações especializadas como o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS). As políticas públicas devem ser construídas com base em dados confiáveis, não em percepções ou estimativas sem fundamento.
4. Discriminação institucionalizada
Estabelecer tarifas diferenciadas na saúde e na educação para pessoas sem residência permanente viola o princípio da igualdade perante a lei e os padrões internacionais de direitos humanos. Essa medida institucionaliza a exclusão e contradiz o compromisso regional com a cidadania mercosulina.
5. Criminalização da mobilidade humana
O endurecimento desproporcional das causas de impedimento de ingresso e expulsão reforça uma abordagem securitária que criminaliza a migração. Esse paradigma vai contra os padrões internacionais e os compromissos assumidos pelos países do MERCOSUL em diversos fóruns multilaterais.
6. Evasão do debate democrático
Utilizar um DNU para modificar aspectos substanciais do regime migratório evita o necessário debate parlamentar e priva a sociedade civil de participar de uma discussão que a afeta diretamente. Reformas estruturais requerem processos participativos e transparência institucional.
Um padrão preocupante
Esta reforma soma-se a outras decisões que enfraquecem os mecanismos de integração regional: o corte do apoio financeiro ao Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) do MERCOSUL e o desfinanciamento da delegação argentina do PARLASUL, eleita democraticamente por voto popular.
Essas ações configuram um padrão de afastamento dos compromissos regionais que coloca em risco décadas de construção institucional e de cooperação entre nossos países.
O caminho a seguir
Desde a Comissão de Direitos Humanos do PARLASUL decidimos agir com firmeza, mas também com responsabilidade institucional. Por isso, solicitarei uma reunião com o Ministro da Justiça da República Argentina, Dr. Mariano Cúneo Libarona, para transmitir diretamente essas preocupações e abrir um canal de diálogo respeitoso em defesa dos direitos de todas as pessoas.
Além disso, estaremos presentes na próxima reunião do Foro Especializado Migratório do MERCOSUL, programada para o dia 21 de maio em Buenos Aires, para dar seguimento a esse tema crucial para a integração dos nossos povos.
Uma responsabilidade compartilhada
Como parlamentares regionais, temos a obrigação de defender os princípios que sustentam o MERCOSUL. A integração baseada na dignidade, na igualdade e na livre circulação não pode ser negociável. A política migratória não pode se dissociar dos direitos humanos nem dos compromissos que nossos países assumiram democraticamente.
O MERCOSUL tem sido um exemplo mundial de integração regional com rosto humano. Não podemos permitir que retrocessos unilaterais coloquem em risco esse legado construído por gerações de cidadãos que acreditaram em um futuro comum.
A defesa dos direitos das pessoas migrantes é, em última instância, a defesa dos valores que nos unem como região. É hora de reafirmar esses valores e agir em conformidade.