"Cerremos fileiras com a Argentina", defende Requião, em apoio ao país contra os "fundos abutres"

Foto: Agencia SenadoDiscurso do Senador Roberto Requião, proferido no Senado brasileiro, no dia 2 de julho de 2014.

Sexta-feira, nós vamos ganhar da Colômbia e, no sábado, nós vamos torcer pela Argentina, porque, para nós, a grande satisfação era ter um fim de copa sul-americano. Torcemos sábado pela Argentina para, posteriormente, podermos derrotá-la e viabilizar a vitória brasileira no campeonato.

Sr. Presidente [do Senado brasileiro], é sobre a Argentina que eu falarei da tribuna nesta tarde; é sobre a crise que a Argentina vive. O que vale mais, Presidente: a vida ou o dinheiro, Deus ou Mamon, alguns poucos espertos especuladores ou uma população inteira, alguns abutres do capital financeiro ou uma nação soberana, sua história e o seu futuro?


É realmente interessante observar como estas opções se enfrentam com força e radicalidade na quadra histórica mundial. É instigante que seja uma nação sul-americana, a Argentina, não o palco do enfrentamento, pois o teatro desta guerra entre a morte e a vida é planetário, mas que seja em torno dela, de sua soberania, da sua economia, da vida de sua população, que a disputa se estabeleça, e que se estabeleça com um a clareza solar para todos os que queiram ver a realidade e crescer na sua consciência.

Para entendermos o que se passa em torno da crise da dívida Argentina, é preciso trazer ao conhecimento ou à lembrança alguns dados fundamentais. A economia Argentina, Senador Ferraço, foi destruída pelo neoliberalismo comandado pelo ex-presidente Carlos Menem, que aplicou o conhecido receituário neoliberal através do Plano Cavallo, de Domingos Cavallo, então Ministro das Finanças.

Cedeu ao fascínio mortal do dólar, estabelecendo a paridade do peso com o dólar norte-americano em 1991, quando este se encontrava em queda. Em consequência, recebeu um afluxo imenso de capitais especulativos de fundos estrangeiros, fundamentalmente para a privatização e desnacionalização dos serviços de utilidade pública, inclusive a empresa petrolífera nacional, correios, telefonia, gás, eletricidade e água. Menem cumpriu à risca as ordens do chamado ajuste estrutural do Fundo Monetário Mundial, aplicado em todos os países subdesenvolvidos a partir da crise mexicana e consequente moratória em 1982.

A primeira ordem era desvalorizar as moedas e orientar as economias para busca sistemática das divisas necessárias para pagar a dívida. A segunda ordem era enxugar o orçamento para eliminar a concorrência da dívida pública, governo central, priorizando a dívida externa. Em seguida, seria necessário reduzir a demanda interna e privilegiar exportações, privatizar, cortar salários e aposentadorias, tudo para pagar os juros, Senador Paim, dos agiotas internacionais.

Á época, Menem era incensado pela mídia internacional e pelo sistema financeiro mundial como o melhor presidente entre os países em desenvolvimento do mundo, e assim Bill Clinton o chamou e o classificou, tendo chegado – Menem – a dirigir uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. Era um verdadeiro pop star, um garoto-propaganda das supostas virtudes do neoliberalismo.

O alinhamento do peso ao dólar só funcionou temporariamente, e, quando funcionou, foi devido a uma formidável regressão social. A indústria argentina foi simplesmente devastada. A produtividade per capita aumentou em 30% de 1991 a 1998, mas o salário médio caiu em 3%. A taxa de desemprego passou de 7% em 1992 para mais de 17% em 2002, e a explosão do desemprego arrasou a Argentina. Por outro lado, a paridade com o dólar americano derrubou a competitividade das mercadorias da Argentina de forma brutal. Entre 1997 e 2001, a taxa de câmbio peso/dólar foi mantida em 1 por 1, e os preços permaneceram estáveis. No mesmo período, o real brasileiro perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar, com aumento de 25% nos preços internos contra a estabilidade obtida pela Argentina. Em consequência, os preços argentinos em dólar duplicaram em relação aos preços brasileiros com reflexos evidentes no saldo comercial.

Perante os Estados Unidos, a paridade peso/dólar garantia certo equilíbrio, mas gerava, Senador Suplicy, uma grande deterioração com relação aos países da América Latina, principalmente os do Mercosul, e, logo, evidentemente, o Brasil. A Argentina acabou adotando medidas protecionistas para resistir à invasão dos produtos brasileiros, e a intensificação de transações comerciais, dentro do Mercosul, sofreu, evidentemente um abalo. O Brasil pagou o preço da resistência correta à proposta da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, quanto à sua política monetária e ao distanciamento que adotou em relação ao movimento geral de dolarização.

Enquanto isso, a crise argentina se aprofundava. Uma camada estreita da população se beneficiava do modelo e da distribuição absolutamente desigual, que se tornou, ao longo do tempo, inaceitável. Perdiam os assalariados, os pequenos poupadores e os aposentados; ganhavam os bancos, os credores estrangeiros, os capitalistas argentinos do setor de exportações, os grupos multinacionais espanhóis e franceses, assim como seus governos, sem falar de instituições como o FMI e o Departamento de Tesouro norte-americano.

O mercado interno perdia dinamismo e a especulação toma conta da economia. Em plena crise, a bolsa de Buenos Aires registrou uma alta devido à compra de títulos facilmente renegociáveis em dólar, e calcula-se em um total de US$120 bilhões as fugas de capitais, dos quais 24 bilhões só entre março e dezembro de 2000, ou seja, um número mais ou menos equivalente ao da dívida pública.

Em 2000, as exportações argentinas representaram 9% do Produto Bruto Interno, um índice absurdamente baixo. Esse déficit comercial crescente conduziu a Argentina a uma espiral de espoliação. O déficit comercial semeou a dúvida entre os especuladores, tanto quanto à manutenção das taxas de câmbio, como também quanto à capacidade de o governo argentino cumprir os seus compromissos.

Nos meses da crise, a tal perda de confiança era diariamente quantificada pelas famosas agências de risco. Para enfrentar a tal desconfiança dos especuladores, a Argentina passou a adotar aumentos espetaculares das taxas de juros, de maneira a oferecer garantias contra o risco de mudanças e de imediato o risco da insolvência.  Várias medidas de ajuste para pagar os credores fracassaram. A última medida, o congelamento das contas bancárias, para evitar a saída de capitais, levou milhares às ruas em dezembro de 2001. Instalou-se o caos: saques a supermercados, panelaços, protestos, Senador Suplicy, na porta dos bancos.

Foi assim que o neoliberalismo, o fascínio mortal do dólar e dos abutres do capital financeiro, praticamente, faliram a República Argentina. No auge da crise, elegeu-se Fernando de La Rúa, que, logo, renunciou. No vazio político criado, a Argentina teve cinco presidentes em apenas duas semanas, entre eles, o peronista Adolfo Rodriguez Saá, que ficou no governo apenas uma semana e que decretou a moratória da dívida externa argentina. Eduardo Duhalde, que o sucedeu, desvalorizou o peso e convocou eleições para 2003, quando foi eleito Nestor Kirchner, com apenas 22% dos votos. Kiirchner manteve o Ministro da Economia de Duhalde, Roberto Lavagna.

A Argentina resolve sair da crise sozinha sem os famosos programas recessivos do Fundo Monetário Internacional, que sempre manda que os governos tirem dinheiro da população para pagar os especuladores, como aconteceu recentemente com a Grécia. Com Kirchner, a Argentina resolveu reestruturar suas dívidas, chamou os credores, disse-lhes que o país não tinha dinheiro para pagar mais porque precisava investir em aumento de salários, criação de empregos e planos sociais.  E propôs aos credores a troca de papéis com juros altos e prazo curto por títulos de juros baixos e prazos longos, os chamados suaps, ou seja, pediu oxigênio para continuar vivendo porque mortos não pagam dívidas. Aliás, também não é o caso de nações morrerem na mão de rentistas e de abutres do mercado.

A reestruturação ocorrida em 2005 e 2010 alcançou mais de US$100 bilhões, após a moratória decretada em 2001. Aceitaram negociar e reestruturar a dívida 93% dos credores. É um número fantástico, Senador Suplicy: 93% dos credores. O resultado foi que a economia argentina começou a crescer 8% ao ano. A situação fiscal mudou para melhor, e a Argentina obteve um superávit fiscal recorde de US$18 bilhões.bMas, dos 7% dos credores que rejeitaram a oferta argentina, exatamente 0,45% do total travam uma batalha judicial contra a Argentina para receber 100% do valor dos títulos, sem o desconto de quase 70% aplicado na operação de troca de títulos (swaps). Esses 0,45% de credores são liderados pelos fundos de hedge, cuja tradução, entendimento é “fundo de multimercado”, Senador Ferraço. Em português claro, são “fundos abutre”, são os buitres. São agressivos, atuam em altíssimo risco, agem com controles mínimos, realizam operações proibidas em outros fundos, preferencialmente derivativos; são os restritos a bilionários e, pasmem, podem assumir a forma de sociedade limitada, protegendo, desta maneira, os especuladores.

Os principais fundos abutre que infernizam a Argentina e os argentinos são o Aurelius Capital Management e NML Capital Management – este controlado por Elliott Management, do vampiro magnata Paul Singer. Juntos, esses poucos credores que, repita-se, representam apenas 0,45% dos credores argentinos e que não participaram da reestruturação da dívida argentina, buscam na justiça norte-americana US$1,3 bilhão. Mas há a condição de isonomia entre credores. Se esses conseguem uma vitória, o total da dívida argentina e a negociação anterior com 93% dos credores simplesmente desaparece e a dívida argentina salta para R$120 bilhões, US$20 bilhões.

Um dado importante. Em 2008, quando explodiu a crise do subprime nos Estados Unidos, havia 8 mil fundos hedge atuando no mundo, movimentando em torno de U$1,3 trilhão. Eram uns vampiros, que criaram o subprime, os derivativos e explodiram a economia norte-americana, levando de cambulhada o planeta Terra. Ou seja, os abutres – se preferirem, vampiros – que levaram o mundo à crise da qual ainda não saímos são os que querem agora colocar a Argentina de joelhos, com as bênçãos da Corte Suprema dos Estados Unidos, para sugar até a última gota do sangue de sua economia e do esforço nacional para produzir bens e serviços necessários à vida das pessoas.

Depois de Néstor Kirchner, a Presidente Cristina e o povo argentino lutam para provar à Corte Suprema dos Estados Unidos a sua disposição para negociar, para manter sua economia funcionando e para conservar o crédito internacional do país.

Para ficar apenas com um exemplo, o Congresso argentino aprovou, com apoio praticamente irrestrito da oposição – como dizia agora há pouco o Senador Simon que aconteceu com a aprovação do Plano Real no Congresso brasileiro – um projeto de lei que reabriu a reestruturação da dívida externa argentina por tempo indeterminado. Mas a Corte Suprema de injustiça dos Estados Unidos ficou do lado dos abutres e dos vampiros.

No dia 16 de junho último, a Corte recusou um recurso apresentado pela Argentina para revisar a ordem do juiz Griesa de pagamento prioritário aos abutres, 0,45% da dívida, em detrimento dos credores, 93% da dívida. Credores que participaram do projeto de reestruturação da dívida argentina. Ou seja, determinou que tudo que a Argentina depositar para pagar os compromissos junto aos credores será automaticamente transferido aos abutres, aos vampiros do mercado, aos vampiros do capital vadio. O famoso capital vadio, que nada produz, mas vive da especulação das bolsas...
vive à margem das leis, vampirando e sugando o sangue soberano de países que tentam com justiça social se desenvolver – os anjos caídos, os filhos de Mamom, como diz a nossa Bíblia e repete o Papa Francisco a cada momento.

O governo da Argentina anunciou, no último dia 26, o pagamento de US$832 milhões de títulos da dívida renegociados, sendo que US$539 milhões foram depositados em contas do Bank of New York, que está intermediando os pagamentos internacionais da Argentina. Ignorando a justiça local e a possibilidade de embargo, tudo deverá ser transferido aos abutres, diz a Corte Suprema dos Estados Unidos.

Como disse o jovem Ministro da Economia Argentina, Axel Kicillof, na ONU, a convite do G77, “a Argentina quer continuar pagando e não deixam”. É um caso insólito. Não se pode aceitar que, em três dias, um país não tenha outra opção além de ter uma dívida nova de US$15 bilhões ou de US$120 bilhões, que poderia resultar de novas demandas de credores se a decisão da Corte Suprema for implementada. Com isso, a Argentina corre o risco de se tornar inadimplente, entrando no que se chama de moratória técnica, no jargão das finanças internacionais, com todas as suas consequências.

O mundo se escandaliza, mas afinal a Corte Suprema dos Estados Unidos não é supostamente uma instituição para a promoção e distribuição do direito e da justiça? Não. Não é, mesmo porque, segundo um velho ensinamento do tio Carlos, o direito é a cristalização da força ou, na palavra do seu mais autorizado intérprete, Pachukanis, “o direito é uma forma burguesa que atinge o máximo de seu desenvolvimento no capitalismo e que deve ser extinta quando a superação desse modo de produção for obtida”.

É disso que se trata: de força bruta, ainda que se apresente sob a cândida e falsa aparência de técnica decisional jurídica.

Foi assim que os Estados Unidos e o capital agiram com Kadafi. Era um anjo, um anjo bom, quando fazia negócios vantajosos com os europeus e norte-americanos, e quando financiava campanhas eleitorais, como a do ex-Presidente francês Nicolas Sarkozy. Foi assim com Saddam Hussein, financiado pela CIA e apoiado pelos Estados Unidos para lançar o Iraque na guerra contra o Irã. Foi assim com a criação da Al Qaeda e Osama Bin Laden. Foi assim com o legado da ação da CIA no Afeganistão, para criar problemas para a União Soviética. Algumas dessas e outras ações que resultaram na destruição de países e de nações foram consideradas ilegais pela suprema corte dos Estados Unidos? Não, não foram. Então, por que o ataque dos abutres mais ousados e gananciosos do capital financeiro contra a nação argentina seria reprimido pela suposta guardiã do direito norte-americano?

O que resta de consciência de civilização se levanta contra os abutres e vampiros do capital financeiro e contra sua corte de gendarmes, a pretensamente honorável corte suprema dos Estados Unidos. Grita a Celac, grita a Unasul, o Mercosul e o Parlasul. Somos todos argentinos neste momento. Como disse a Presidente Cristina na ONU: “somos vítimas seriais dos lobistas, que especulam sobre países que caem em moratória”. Essa é a história da Argentina, mas pode ser a história de outros países. Pode ser a história do Brasil, com o aprofundamento da crise econômica.

Concluo este pronunciamento com uma convocação aos partidos políticos, aos movimentos sociais, às igrejas, aos jogadores de futebol e às torcidas, que estão com as atenções voltadas para a Copa do Mundo: cerremos fileiras com a Argentina! Defendê-la neste momento é defender a vida contra a força bruta dos agentes da morte, os vampiros e abutres do capital vadio. É preciso que a voz forte da consciência latino-americana se levante, como se levantou em tantos outros momentos da história, como na Guerra das Malvinas, para expressarmos sem titubeios nossa indignação contra os ataques vis que sofre, neste momento, a nação argentina e, por via de consequência, o Mercosul.

Cerremos fileiras com o Papa Francisco contra o capital financeiro selvagem, contra a força bruta do capital e dos seus juízes, contra Mamon, contra o poder do dinheiro. Neste momento, em especial neste momento tormentoso e difícil, sejamos todos argentinos. Sejamos argentinos no futebol, contra a Bélgica, para que logo depois voltemos a ser brasileiros na vitória final que, suponho, será do Brasil contra a Argentina, na Copa. Mas, neste momento em que a soberania, em que a vida de um povo é ameaçada, nós, latino-americanos, somos, Senador Suplicy, todos argentinos.